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3.23.2009

Trabalho em Equipe: mito ou falácia?

Por: Wagner Siqueira

Cada vez mais o mundo corporativo se vale de variados processos, procedimentos e mecanismos de manipulação e de poder para anular e desconstruir a subjetividade de seus membros, nas diferentes formas com que estes se apresentam na inter-relação com a organização: funcionários, terceirizados, parceiros, colaboradores, consultores, fornecedores, competidores, etc. Ritos e rituais específicos, valores, credos, mitos, totens, símbolos de linguagem são estabelecidos no propósito de fixar uma liturgia empresarial própria que subjugue a identidade de todos e de cada um particularmente no interesse da organização.

As relações culturais, simbólicas, sociais e de trabalho nas organizações que se auto-cultuam forjam e estandardizam identidades individuais em favor do grupo como a única forma de sobrevivência na comunidade empresarial. A tirania do trabalho em grupo se torna um hábito e a tal ponto se dilata que acaba virando doença, conforme nos lembra Dostoievski em “Casa dos Mortos”.

É preciso um olhar mais crítico sobre conceitos, verdadeiros lugares-comuns, amplamente difundidos, como flexibilidade nas relações de trabalho e trabalho em equipe como verdades consagradas, mas que , o mais das vezes, não passam de estratégias sutis de manipulação que geram enormes lucros para as empresas, mas fazem com que os trabalhadores percam a motivação e os vínculos com o trabalho que realizam.

Um sistema que aliena os seres humanos das razões mais profundas da vida certamente não manterá a legitimidade por muito tempo. É preciso que as coisas comecem a mudar. Talvez essa mudança já esteja ocorrendo, apenas ainda não está sendo vista.

As organizações não são mais concretas do que os indivíduos que as incorporam. Abstrações como tradições, hábitos, práticas e precedentes de que as organizações se valem tanto para afirmar sua hegemonia não são mais sábias do que as pessoas que as utilizam.

As organizações que cultuam a religiosidade do trabalho estabelecem uma cultura repressiva e totalitária, que impede a manifestação da individualidade da pessoa, para poder propiciar a valorização do grupo no interesse dos negócios da empresa. A imposição da prevalência dos desejos, aspirações, sentimentos e necessidades do grupo seqüestra o eu do indivíduo para tornar todos iguais, padronizados, numa busca permanente de concordância auferida não pela manifestação de todos de forma livre e espontânea, pela aceitação da divergência e da discordância, mas pela ditadura do consenso estabelecida por uma maioria de míopes que se recusam enxergar a realidade livres dos condicionamentos que assimilam como verdades absolutas, fixadas pelo credo organizacional dominante.

No mundo do eu me amo, do narcisismo desenfreado, a privatização da trajetória existencial assume proporções inusitadas que o eu constantemente invade o já tão esvaziado espaço do outro. Ser e compreender o outro hoje em dia é duro nessa passarela de vitrines do ego, conforme nos lembra *Sennett. Ser sincero e franco, aberto e disponível talvez seja a única forma de convencer empregados desmotivados, descrentes e até cínicos de que somente uma relação fundada na verdade e no apreço genuíno pelos outros pode ser capaz de estabelecer uma parceria autêntica entre a organização e a sua força de trabalho, de sorte a atuar num legítimo processo de trabalho cooperativo em sinergia.

No dizer de Émile Durkheim, o ser humano é um ser social. As organizações que se transformam em verdadeiras seitas assim interferem decisivamente na construção da identidade de seus membros. Cada um passa a se nortear pelo comportamento do outro, até nas maneiras de pensar e agir, vestir e viver, nos seus hábitos e atitudes, na sua visão de mundo e nos seus gostos e preferências, no desempenho no trabalho e na vida social. É claro que não há uma individualidade pura, inteiramente descontaminada de quaisquer influências, em nenhum espaço do universo social. A nossa subjetividade é sempre alimentada pelas diferentes relações sociais em que nos envolvemos no cotidiano de nossas existências. Nem sempre somos o que queremos ser, temos que nos ajustar à sociedade em que vivemos. No entanto, um número crescente de organizações pretende estabelecer a identidade única, o indivíduo-coletivo, estandardizado e pasteurizado pela realidade do trabalho.

No universo corporativo busca-se a hegemonia do pensamento único, isto é, forja-se uma cultura totalitária. Algumas características da vida organizacional encontram-se de tal forma estabelecidas e estratificadas, que muitos já não conseguem imaginar que possam ser diferentes.

O trabalho em equipe pressupõe a discussão franca e aberta, sem apelo à autoridade e ao uso da hierarquia. Todos são livres para expressar as suas opiniões e convicções. Tomada a decisão, todos a devem assumir como sua. A partir daí, no entanto, a divergência nessas organizações passa a ser a prima-irmã da insubordinação, quase sempre estigmatizando o dissidente como aquele que não sabe jogar no time, não veste a camisa, não tem espírito de grupo.

Aplicado à realidade da família, o conceito deformado do que seja trabalho em equipe pode ser altamente destrutivo à educação dos filhos e, portanto, à construção de realidades familiares rígidas. A fragilização da autoridade do pai e da mãe, a discussão exagerada de questões familiares cotidianas sob a pseudo pretensão de desenvolvimento de relações democráticas entre pais e filhos quando, muitas vezes, na verdade, se esconde o desejo de simplesmente dizer não, acabam por gerar desorientação e falta de referências na educação dos filhos.

O problema crescentemente agravado do uso de tóxicos, da falta ao estudo, do sexo na adolescência, da gravidez prematura, da violência doméstica provêm da perplexidade de pais que inadvertidamente tentam trazer para o seio familiar práticas de gestão de trabalho em equipe que incorporam da realidade do mundo corporativo, o que nada têm a ver com o cotidiano das relações familiares e comunitárias.

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